sexta-feira, 21 de outubro de 2011

O Bebê Sorridente


E quando no parto retirado 
das entranhas de sua genitora
Respirando o seu primeiro oxigênio
À primeira palmada de luvas do obstetra

Gargalhou ao invés de chorar um recém-nascido 
que pela vida afora iria sorrir quando a dor sentisse
e quanto mais esta doesse, mais ele riria de contente...

Levado aos melhores da medicina
Para ser curado da estranha doença
O menino que  ria de suas desgraças
Que dançava com seus sofrimentos
Que carinhava suas terríveis chagas,
Foi  o novo homem dos novos dos tempos...

As Borboletas

Entre  2017 e 2019, eras longínquas,
Espécies originais de lagartas coloridas 
passaram a devorar a  Mata Amazônica.
E depois de desfolhada a inteira floresta,
E concluindo a metamorfose completa,
Partiram em  revoada gigantesca
Nuvens amarelas de zilhões de borboletas
desovando e destruindo todas as plantações do planeta.

...E até que a humanidade morreu de fome esquelética...

A Peleja de Lampião com Antônio Conselheiro (À maneira de Cordel)


"Virgulino Ferreira, o Lampião
Bandoleiro das selvas nordestinas
Sem temer a derrotas nem ruínas
Foi o rei do Cangaço no Sertão"

Antônio Vicente, Conselheiro
Pregador das estradas do agreste
Enfrentando exércitos e a peste
Foi o maior messiânico brasileiro

E eis que um dia esquecido nos caminhos
As estradas desses dois se cruzaram
Fazendo cruzar seus dois destinos
E os  dois se encarando, pararam

Lampião estava com seu temido bando
Armados todos até os dentes
Conselheiro tinha os seus ao seu comando
Mas com armas bastante diferentes

Lampião falou primeiro em alto som:
- Junte-se a nós ou saia do caminho!
Conselheiro respondeu num baixo tom:
- Junte-se você a mim ou parta sozinho.

É a última vez que aviso, ameaçou Lampião:
- Se não sair   será feia a carnificina!
- Porque brigar separados,  respondeu o de batina,
Se podemos lutar juntos por este sertão?

- Então lute do meu jeito, falou Lampião,
Saqueando  e fugindo por esta Terra!
 - Porque não lutar na lei do meu sermão
Arrebanhando fieis para a nossa guerra?

- Porque ajuntados e num só lugar parados
Seremos cercados, e facilmente trucidados!
- Mas fugindo separados, cada um por seu lado
Não seremos mais facilmente derrotados?

- Seremos derrotados se formos poucos
Então se junte  a mim que muitos seremos!
- É contra  a minha lei  lutarmos como loucos
Não será sendo santos que nós venceremos?

- A morrer como santo, prefiro matar como o capeta
A seguir tua lei, prefiro meu destino cumprir!
- Mas teu destino será  a morte certa
Se  agora em diante outro rumo seguir...

- Bem sei que és profeta e acredito em ti,
Mas por isso também conheces tua sina
E sabes que seguir seu rumo sem mim
Morrerá como eu em outra carnificina!

- Morreremos os dois se lutarmos separados
Mas se minha sina não pode ser o destino teu
Que sigamos a vida cada qual por seu lado
Morrendo na terra, e nos encontrando no céu...

- Assim seja, Conselheiro!
- Assim seja, Bandoleiro!
- E vá com Deus, Lampião!
- Vá em paz, meu irmão!

A Peleja de Elvis Presley com o Tempo e a Morte (À maneira de Cordel)


Jornalista em início de carreira
Estava eu viajando de avião
E papeando com o companheiro de cadeira
Foi que ele me revelou então:

“- Estás começando e és novo na profissão
Mas por isso mesmo vou te dar agora
A matéria de tua vida na palma da mão
Pegue este endereço e não jogue fora.”

Pela vez primeira acreditei no que não conheço
E ao terminar a viagem e pisar no chão
Peguei outro vôo para aquele endereço
Que ficava numa ilha,  longe da civilização

Chegando lá vi um velho ancião
Que se aproximando,  me recebeu.
Perguntei seu nome por educação
E ele falou: “-  Presley! Elvis não morreu!”

Eu perguntei que brincadeira era essa?
Ele respondeu que a coisa era certa
Me mostrou a identidade e riu a beça
Da minha cara de bobo de boca aberta...

Mas como e por quê? Perguntei e ele falou:
“- Não estou sozinho,  não foi só eu.
Estão aqui  Jim, Jimi, Janis, James, John...
Todo ídolo que o mundo pensa que morreu.”

Que é um retiro de artistas, deu pra entender...
Mas qual o motivo disso, meu Deus? – Insisti.
Ele disse: “- Logo, logo você vai  compreender:
Tá vendo aquela velhinha naquele cantinho ali?”

É uma velhinha qualquer, com desdém, respondi.
“- Não. Você está vendo o maior símbolo sexual da tevê.”
 Aquela caquética? É a velha mais feia que já vi!
“-  Pois o motivo oculto, você acabou de conhecer!”

“- Para nós foi melhor “morrermos” jovens e na fama
No auge da beleza, do sucesso e tudo mais
Do que envelhecermos humilhados frente às câmaras
Mutilados pelo tempo, como todos os mortais.”

“- Preferimos ser jovens eternos e virarmos mito,
Pois ante a eternidade, o que são uns anos a mais?
Morrer, mais dia menos dia,  todo o mundo vai
Mas morrendo jovens, nós ganhamos o infinito!”

É um bom motivo, mas quero ver para crer:
Quem é aquela bruxa ali fedendo à xixi e cocô?
“- Aquela foi a mulher mais linda da tevê!
Você está olhando para Marylin Monroe!”

O LIVRO DO TEMPO

Remexendo um baú de seculares pergaminhos
De anônimo defunto encontrei um livro antigo
Que lendo descobri ser a história das eras.
E tudo o que aconteceu estava lá escrito...

E quando eu cheguei às páginas finais
já lido o passado, li notícias do presente,
que se escreviam sozinhas ao meu olhar,
nas páginas em branco, simultaneamente
ao principal do mundo que ia acontecendo.

E fui lendo e rapidamente envelhecendo, 
Até que, distraído, li meu próprio falecimento...

A MISÉRIA DA MEMÓRIA

Eram dois guerreiros inimigos
Em combate, há muito tempo
Dois jovens, um judeu e um palestino
Prestes a se matarem, frente a frente

Até que um míssil caído do céu do deserto
fere os dois a um só tempo e destino
De modo que ao acordarem do desmaio
A memória do que eram haviam esquecido

o que foram e o que era a história,
tudo perdido, e perdidos seus caminhos
Só tinham um ao outro na memória
E num mundo vago se encontravam sozinhos

Esqueceram que eram inimigos
E se deram as mãos solidárias
Esqueceram  que eram soldados
E deixaram as armas para trás

Esqueceram suas religiões
E ajoelharam juntos
Esqueceram suas nações
E falaram a mesma língua

Esqueceram os seus costumes
E se abraçaram como mulheres
Esqueceram que eram homens
E choraram como meninos
Esqueceram que eram masculinos
E se beijaram como amantes

Esqueceram onde moravam
E foram andando dadas as mãos
Esqueceram o que eram
E pensaram que eram irmãos.

Esqueceram os seus costumes
E se abraçaram como amantes
Esqueceram que eram homens
E choraram como meninos
Esqueceram que eram masculinos
E se beijaram como amantes

O HOMEM QUE BOMBARDEOU HIROSHIMA


Ainda há pouco, estava numa UTI de hospital, com agulhas perfurando minhas veias, ligadas à mangueirinha do soro, que ia pingando, pingando, como se medisse o tempo. Meu peito subia descia involuntariamente ao compasso do balão de oxigênio. Vi o teto branco da UTI, a luz da lâmpada fluorescente ofuscando meus olhos, senti a boca e a garganta secas. As paredes e o teto foram ficando cada vez mais brancos. A luz da lâmpada cada vez mais intensa...
De repente, estou no quadrimotor B-29 que batizei de  Enola Gay, em homenagem à minha mãe. Há muitos soldados comigo, mas nenhum sabe qual é a nossa missão. A ordem era eu não contar.
É  manhã do dia 6 de agosto de 1945. Lá de cima avisto o rio Ota. Lá de cima avisto Hiroshima. Na barriga do meu avião está a Litle Boy. Enola Gay, minha mãe, está novamente grávida, prestes à dar a luz a 210 mil mortos...  Sei que a maioria dos que estão lá embaixo são crianças, mulheres e velhos. Os rapazes e homens japoneses foram recrutados para a guerra.
A Little Boy é uma garotinha de 3,2 metros de comprimento, 74 centímetros de diâmetro e 4,3 toneladas de peso. Uma bola de fogo, cuja temperatura no núcleo é de pelo menos 200 mil °C, criará uma sucessão de ondas de abalos. Ventos de até 965 km/h sugarão a poeira para cima e criarão uma nuvem em forma de cogumelo, que cairá sob a forma de chuva radioativa nos arredores da cidade. Sei que nos primeiros segundos  70 mil crianças, velhos e mulheres, filhos, irmãos, pais, mães, avós serão carbonizados instantaneamente pela enorme nuvem em forma de cogumelo. Milhares de feridos em carne viva correrão para os hospitais, que no entanto, já estarão destruídos. Procurarão por médicos e enfermeiras que já estarão  mortos.
Raios de calor entre 3 mil a 4 mil graus Celsius provocarão queimaduras e ferimentos internos nas pessoas, incêndios se espalharão por quilômetros dentro da cidade. As queimaduras farão a pele cair em tiras deixando à vista a carne sangrenta. Muitos pularão desesperados no Rio Ota, tentando cessar a dor. Centenas de pessoas se contorcerão na correnteza. Muitas não saberão nadar. Uma chuva preta, oleosa e pesada cairá ao longo do dia junto à poeira radioativa. Os sobreviventes e os seus descendentes sofrerão seqüelas para sempre, além de deformações físicas permanentes e moléstias de longo prazo, como o câncer. Muitos viverão com pedaços de vidros e estilhaços incrustados no corpo.
Sim, eu sei disso tudo. A ordem do Presidente Trumman é lançar a bomba, mas eu estou no comando desse avião. A decisão é minha. A alavanca do alçapão que soltará a bomba está em minhas mãos. Lá embaixo está Hiroshima.
-          Foda-se o imbecil do Presidente Trumman! – E ao invés de soltar a bomba me jogo do avião...
***
Sei que acabo de morrer numa cama de hospital e ao entrar na eternidade, estou tentando enganar-me, enganá-la. Sim, eu joguei aquela bomba, mas agora estou caindo, por todo o espaço infinito, numa queda sem direção, infinítupla e vazia. Minha alma é um maelstrom negro, vasta vertigem à roda de vácuo, movimento de um oceano infinito em torno de um buraco em nada, e nas águas que são mais giro que águas bóiam todas as imagens do que vi e ouvi no mundo — vão casas, caras, livros, caixotes, rastros de música e sílabas de vozes, num rodopio sinistro e sem fundo.
E eu, verdadeiramente eu, sou o centro que não há nisto senão por uma geometria do abismo; sou o nada em torno do qual este movimento gira, só para que gire, sem que esse centro exista senão porque todo o círculo o tem. Eu, verdadeiramente eu, sou o poço sem muros, mas com a viscosidade dos muros, o centro de tudo com o nada à roda. E é, em mim, como se o inferno ele-mesmo risse, sem ao menos a humanidade de diabos a rirem, a loucura grasnada do universo morto, o cadáver rodante do espaço físico, o fim de todos os mundos flutuando negro ao vento, disforme, anacrônico, sem Deus que o houvesse criado, sem ele mesmo que está rodando nas trevas das trevas, impossível, único, tudo. Minha mãe morreu muito cedo...
-            Enola Gay! – Grito o seu nome, que morre mudo no vácuo,  e o corpo de minha alma continua a cair no infinito, eternamente.



HERÓIS DA BATALHA DAS TONINHAS


Primeira Guerra Mundial.  É novembro de 1918. Situação: Entrincheirado. Pertenço ao pelotão de segurança dos médicos brasileiros enviados à terra francesa. Chegamos em 24 de setembro de 1918 pelo porto de Marselha, depois de uma viagem inglória, incluindo a Batalha das Toninhas, a qual descreverei ao tempo certo.
Uma missão médica brasileira fora enviada ao teatro de guerra europeu com a finalidade de instalar um hospital, porém como eu e mais quatro companheiros  nos perdermos do comboio médicos brasileiros, e portássemos armas, além de não falar francês, fomos confundidos com soldados por oficiais do exército gaulês, que também não falavam português. Assim, fomos enviados sem saber para o campo de combate e agora me vejo aqui numa trincheira, eu e meus compatriotas Fernando, Ricardo, Alberto e Álvaro, todos sem nenhum preparo para a guerra.
                Além de nós, apenas um pelotão de soldados franceses, todos desconhecidos e incomunicáveis. Tipos curiosos, caras sem interesse, uma série de apartes na vida. Porém, ninguém era mais curioso, nem mais estranho, nem mais incomunicável que Fernando. Este era um homem que aparentava trinta anos, magro, mais alto que baixo, curvado exageradamente quando sentado na vala da trincheira, mas menos quando de pé, vestido com muito capricho para uma guerra, mas não inteiramente caprichoso. Na face pálida e sem interesse de feições um ar de sofrimento não acrescentava interesse, aliás, numa guerra nenhum sofrimento causa interesse. Mas era difícil definir que espécie de sofrimento esse ar indicava – parecia indicar vários, privações, angústias, e aquele sofrimento que nasce da indiferença que provém de ter sofrido muito, e ao qual uma guerra, mesmo inesperada e sem aviso prévio, não parecia incomodar. Falava sempre pouco, comia pouco, dormia pouco e fumava muito seu tabaco de onça. Reparava extraordinariamente os soldados que estavam na trincheira, não suspeitosamente, mas com um interesse especial; mas não os observava como que perscrutando-os, mas como que interessando-se por eles sem querer fixar-lhes as feições ou detalhar-lhes as manifestações de feitio.  Olhava-nos, como se mirasse nossas almas.
Passei a vê-lo melhor, meio que preocupado. Um sujeito assim era imprevisível. E com uma arma na mão e granadas na cintura, imprevisível e perigoso. Sabe-se lá o que tinha em mente... Não usara sua metralhadora uma única vez e estava sempre de costas para o front, recostado no barranco da trincheira. Verifiquei que um certo ar de inteligência animava de modo incerto as suas feições. Mas o abatimento, a estagnação da angústia fria cobriam tão regularmente o seu aspecto que era difícil descortinar outro traço além desse, sempre envolto na bruma formada pela fumaça da pólvora queimada e das suas baforadas no cachimbo. Soube incidentalmente pelo Alberto, que Fernando era ajudante de guarda-livros no Brasil. Como viera parar no pelotão de segurança brasileiro?
Um dia, houve um acontecimento na trincheira: Uma cena de pugilato entre dois soldados franceses. Os que estavam em torno correram para apreciar, pois há muito não acontecia nada de novo, nenhum tiro dos inimigos. Então, troquei com ele uma frase casual, e ele respondeu no mesmo tom. A sua voz era baça e trêmula, como a das criaturas que não esperam nada, porque é perfeitamente inútil esperar, ainda mais ali. Mas era porventura absurdo dar esse relevo ao meu colega vespertino. Não sei por que, passamos a dar-nos boa-noite desde esse dia, quando eu deixava o posto de vigia e o acordava para assumir a sentinela.
Um dia qualquer, que nos aproximara talvez a circunstância absurda de acordamos os dois ao mesmo tempo na madrugada, quando nenhum estava de vigia, entramos em uma conversa casual. A certa altura, ele perguntou-me se eu já havia matado alguém. Menti-lhe que sim. Falei-lhe dum acontecimento em que eu perseguira e matara a tiros uma raposa que comia minhas galinhas. Só que no meu relato, substituí a raposa  por um estuprador e a galinha por uma donzela em perigo. Ele elogiou-me, elogiou-me bastante, e eu então pasmei deveras. Permiti-me observar-lhe que estranhava, porque a arte dos que admiram atos heróicos solitários sói ser para poucos. Ele disse-me que talvez fosse dos poucos. De resto, acrescentou, essa arte não lhe trouxera propriamente novidade: e timidamente observou que, numa guerra, não tendo para onde ir nem que fazer, nem amigos que visitasse, nem interesse em ler livros, soía gastar as suas noites, mentindo também...
Uma noite, o comando do batalhão francês decidiu colocar-nos de guarda, os quatro brasileiros simultaneamente. Assim obedecemos, e ao amanhecer, o capitão rendeu-nos, gesticulando que poderíamos dormir e descansar sossegados. Obedecemos rapidamente, e eu e creio que os outros caímos num sono profundo, pois estávamos há mais de 18 horas acordados...
Quando acordamos, para nossa desesperada surpresa, o batalhão francês havia desaparecido, levando seus caminhões, armas, apetrechos, enfim tudo. Deixaram-nos só com nossas mochilas, que felizmente continham enlatados e cantis com água, e  infelizmente nenhum mapa, infelizmente nenhuma arma... Ou felizmente nenhuma arma? Começava aí nossa guerra solitária contra os alemães, porque não éramos alemães. Também contra os próprios franceses, porque não tínhamos seus uniformes, nem falávamos francês e se topássemos com seus soldados, haveria combate certo. E assim contra os ingleses, italianos, toda a Europa. Estávamos sem querer em guerra contra o mundo... Sem nenhuma motivação, apenas por obra do acaso e de  algumas trapalhadas humanas. E aqui começo meu diário de guerra, onde narro indiferentemente a nossa autobiografia sem fatos, de quatro homens transformados ou  transtornados em uma só alma e sua miséria, sua luta, sua derrota e vitória.
Olhei nos olhos dos meus companheiros, olhos fundos em rostos cavos, pálidos, barbas de doentes por fazer, lábios ressequidos, os pulsos finos nas mangas largas do casaco, mãos magras e trêmulas. Senti compaixão, senti-me forte, superior. Talvez faltassem-me espelhos, talvez cada um deles fosse um meu espelho...  Escrevo o que estou sentindo enquanto nada acontece de importante. Mas o que é mais importante, fatos ou sentimentos? A paisagem é bem parecida com o que sinto: Árida, fria, deserta, cinza, nublada, em ruínas. Marchamos através dela, enquanto ela nos atravessava, sob forma de sensações. Não vejo uma árvore, não vejo um pássaro, pisamos um chão sem vida e me sinto sob a sola vulcanizada da realidade morta. Ouço explosões longínquas, mas não sei se elas existem ou se são meus ouvidos. Sinto cheiro de pólvora queimada, mas não sei se vem de longe ou se é o cheiro da minha pele suja. Mas há vida, marchamos por medo, por mágoa e porque há vida.
Sentamos para descansar, Alberto, o mais velho, tirou do bolso um baralho carcomido e amassado, propôs um jogo para passar o tempo e distrair a fome. Mas cada carta tinha um amassado, um aleijão diferente que a marcava, além de faltarem muitas. Alberto então pôs-se a  fazer “paciências” sozinho durante o infinito da espera, enquanto eu com o mesmo objetivo, escrevia estas linhas no dia de hoje. É o meu jogo de paciência, que me ocupo por pura impaciência de esperar inerte. Alberto olhava atentamente as cartas como quem lesse nosso   destino.  E realmente o lia. Nosso destino era simples como aquelas figuras de baralho. Todas amassadas, aleijadas, machucadas, inúteis naquele tempo e lugar e acabariam perdidas pelo chão estéril.
Ricardo pôs-se a desenrolar um rolo de barbante encardido que trazia no bolso. Seus dedos sujos de unhas enegrecidas tentavam relembrar uma brincadeira da infância em que se formavam figuras com o cordão. Suas mãos magras e trêmulas, de feridas secas, mas ainda doloridas, teciam um único desenho, confuso como um labirinto. Ao contrário da mitologia, o barbante não conseguia mostrar nenhuma saída para ele, apenas o fazia pensar em círculo e chegar sempre à mesma conclusão: estávamos perdidos para sempre... Será que na falta de um livro ou outra distração, ele conseguia esquecer aquela vida com o crochê sem propósito de  seu barbante? Claro que não. Eu, ao contrário, escrevo para lembrar, e assim talvez a esqueça... Meu corpo está preso a este lugar e ao meu cansaço, mas meu pensamento é livre e pode voar. Mas não quero, ou minhas asas estarão atrofiadas?
Ocorre que num dia branco, em que estávamos prestes a morrer de fome, procurando tubérculos dormentes sob a terra gelada, ouvimos ribombos ao sul. Não demorou muito e Álvaro nos chamou a atenção para outros ribombares que pareciam vir do norte. E não tardou mais que o tempo do anterior, um ribombo vindo do sul, dessa feita acompanhado por seu devido projétil, que explodiu a cerca de quinhentos metros de onde estávamos. Então, disparamos em acelerada marcha rumo norte, mas fez-nos estancar um míssil  de canhão vindo daquela direção, que passou zunindo sobre nossos capacetes. Com um binóculo empoeirado, Alberto avistou nas duas direções e concluiu que estávamos numa posição incômoda, cercados por duas linhas de combate inimigas, em forma de meia lua, que avançavam uma contra a outra, ou seja, fechando uma  circunferência sobre nosso terreno. Estávamos no meio do fogo cruzado, sem para onde correr.
Gastamos o restante do nosso pouco tempo e das nossas escassas energias, escavando uma pequena trincheira, onde pudéssemos nos abrigar. Depois, exaustos, caímos dentro dela como cadáveres jogados numa vala comum. E foi em boa hora, pois assim que nos recolhemos à nossa toca, uma bomba ergueu o solo muito proximamente a nós. Daí, não nos restava mais nada a fazer, sem armas, sem saber que lado era o inimigo. E mesmo que soubéssemos o lado amigo e corréssemos ao seu encontro,  fatalmente seríamos recebidos como inimigos. Então, cada um de nós sentou-se escorados em suas fatias de barranco, com os ombros quase colados uns aos outros, o que não era má fortuna, tendo em vista o frio.
Tínhamos à nossa frente a  outra barranca da trincheira, quase tocando nossos narizes, e acima um estreito retângulo de céu esfumaçado e cinzento. Para a nossa audição, o estampido ensurdecedor das bombas;  para o nosso olfato, o aroma onipresente de pólvora queimada; e para o nosso paladar, a boa nova, dezenas de tubérculos, que encontramos durante a escavação. E se alguém tinha preocupação quanto às provisões de água em nosso cantil, uma chuva providencial mandada por Deus, veio encher nossos capacetes e cantis de água,  nossa trincheira, nossos coturnos e calças de lama, e nossos ossos de friagem úmida e penetrante.
Passada a chuva, o curioso é que todos os quatro, sacaram de cadernetas, blocos de anotações e lápis para, assim, escreverem simultaneamente, como se combinado. Talvez, escrevessem suas últimas cartas às respectivas famílias, as últimas mensagens de despedida às suas porventura amadas. E eu, bem... Fiquei  no meu crochê mental de sonhos... Intervalo... Nada... De resto, com que posso contar comigo? Uma acuidade horrível das sensações, e a compreensão profunda de estar sentindo... Uma inteligência aguda para me destruir, e um poder de sonho sôfrego de me entreter... Uma vontade morta e uma reflexão que a embala, como a um filho morto... Sim, crochê... Sonho grandezas... E do alto da majestade de todos os sonhos, caio para um tatu emburacado, roedor de raízes. Mas o contraste não me esmaga — liberta-me; e a ironia que há nele é sangue meu. O que deveria humilhar-me é a minha bandeira, que desfraldei e me levou até aqui; e o riso com que deveria rir de mim, é um clarim com que saúdo e gero uma alvorada em que me faço. Quase todos os homens sonham, nos secretos do seu ser, um grande imperialismo próprio, a sujeição de todos os homens, a entrega de todas as mulheres, a adoração dos povos, e, nos mais nobres, de todas as eras... E eu sonhei.  E o sonho me trouxe a essa apoteose. Vi-me célebre? Mas agora vejo-me célebre como um anelídeo que não pode sair ao sol sem morrer. Sinto-me alçado aos tronos do ser conhecido? Mas o caso passa-se num buraco e minhas testemunhas, consequentemente, são meus detratores. Ouço-me aplaudido por multidões variegadas? O aplauso chega em som de explosão ao meu buraco e colide com meus tímpanos.  Não tive sequer reles castelos em Espanha, como os grandes espanhóis de todas as ilusões. Os meus são das cartas de Alberto, velhas, sujas, de um baralho incompleto com que se não poderia jogar nunca; nem caíram, por que não chegaram a ser montados... Morrerei como tenho vivido, ou seja, já sepultado. Enterrado vivo...
Passávamos a maior parte do tempo, dormindo, se é que dormíamos, ou calados, já que as explosões ficavam cada vez mais próximas e tínhamos que gritar para sermos ouvidos. Decidimos fazer uma cobertura para nossa trincheira, utilizando-nos das nossas mochilas, da lona e de pequenas hastes  de ferro que seriam, originalmente, a estrutura de uma barraca de campanha. Assim, nos protegeríamos da chuva, de algum estilhaço de projétil, já que não do projétil inteiro, mas principalmente, teríamos o que fazer. E assim foi feito.
O embate se aproximava de nós. As bombas foram substituídas gradativamente por disparos de artilharia mais leve. Nossa cobertura foi soterrada, por uma camada de um palmo de terra, permitindo apenas que entrasse algum oxigênio, mas quase nada de luz, deixando-nos ao breu. Até que passamos a escutar, além dos disparos,  gritos de soldados, passos de soldados, rastejar de soldados, a agonia de soldados de uma guerra que se travava bem em cima de nós. E num dado momento, ouvimos o som surdo de um corpo cair deitado bem em cima de nossa cobertura. Ouvimos um berro, uma respiração ofegante, que foi diminuindo a velocidade, até se transformar num chiado profundo e arrastado de asmático, para depois se calar para sempre... Os passos acima de nós também foram diminuindo, assim como os gritos, o rastejar, as explosões e os disparos. A guerra foi ficando longínqua e num dado instante tudo silenciou. Entendemos, mesmo sem trocar palavra, que já podíamos sair de nosso abrigo. E saímos.
Mas ao colocarmos as cabeças para fora da trincheira, quase que retornamos instintivamente, tamanha era a tragédia à nossa frente. Um mar vermelho  de corpos boiando se estendia pela planície a perder de vista. Corpos tão destroçados, que mal daria para identificar a que exército pertenciam, excetuando-se, é claro, o grande exército da humanidade. Ficamos de pé cismando naquela cena, em silêncio absoluto. Até sermos surpreendidos pelo urro animalesco de Fernando:
- Vitória!!! Carambolas! Vencemos, vencemos, vencemos! Ainda estou vivo seus desgraçados!!! Vão tomar banho, seus filhos da mãe! Vitória!!! – E pulava e chorava como um chimpanzé sobre brasas...
Bom, depois de um dia de marcha a norte, fomos recolhidos por um exército de salvação, que nos informou que a guerra acabara e os alemães haviam perdido. De fato, todos os homens haviam perdido. Menos os heróis da Batalha das Toninhas, nós e o Fernando, que como todos sabem, sem disparar um tiro foi o maior herói da Primeira Grande Guerra, e seu nome sobrevive e sobreviverá a todos os outros homens, e  mesmo à memória daquela triste página da história.

GUERRA DE REFLEXOS


 
E eis que mi vi num amplo pátio com gramados entre os caminhos cimentados. Estou sentado em um velho banco de madeira, olho pros lados e vejo homens e mulheres vestidos em camisolões brancos, andando como zumbis. Eu também estou num camisolão branco. Eu também estou me sentindo como um zumbi. Meus braços estão cheios de manchas roxas de picadas de agulhas, minha boca tem um gosto metálico e meu suor fede a remédio. Um velho vestido de branco, não num camisolão mas num uniforme de enfermeiro, se aproxima de mim:
-          Você sabe onde está? – Seus cabelos grisalhos estão lustrados e penteados para trás.
-          Não faço a mínima... Sofri algum acidente e estou num hospital? Não me lembro de nada. Nem do meu nome. – Passa um homem barbudo e seminu.
-          Antes fosse... – Responde o suposto enfermeiro. O homem barbudo está com um pedaço de pau na mão.
-          Como assim? Que lugar é esse? – Meu coração acelera de apreensão. Nisso, aparece uma mulher suja e descabelada num camisolão encardido.
-          É um presídio manicomial. – Diz o meu recente informante, arregalando os olhos. Ao fundo, o homem barbudo começa a correr atrás da mulher descabelada.
-          Presídio?! O que é que eu fiz? – Em meu espanto, nem comento o fato da perseguição do homem à mulher.
-          Manicomial... É natural que você não lembre o que fez. Uma prisão disfarçada, camuflada... – A mulher sobe numa árvore com a agilidade de um chimpanzé.
-          Mas eu não sou louco! Nunca fui! – O barbudo começa a subir na árvore. Mas tem dificuldades.
-          Eu também não, e estou aqui há 37 anos e querem que eu fique pro resto da vida... – O barbudo desiste de subir e parece ir embora.
-          Você pegou perpétua? – O barbudo parece voltar com algo na mão.
-          Até o fim da linha! Mas ainda estou vivo, desgraçados! – O barbudo está com uma machadinha na mão.
-          Então, eu preciso ligar prum advogado, isso cabe um habeas corpus... – O barbudo tenta cortar a árvore, mas no meu desespero nem me toco da agressão.
-          - Habeas corpus?!! – E ri nervosamente. – Há trinta anos estou tentando construir meu habeas corpus. – O barbudo continua batendo a machadinha na árvore.
-          - (...) – Começo a me preocupar com a mulher da árvore.
-          - Quem entra aqui não sai... Você também pegou pérpetua? – O barbudo desiste de cortar, joga a machadinha pro lado e volta a tentar subir na árvore.
-          Como assim pérpetua? Não me lembro de ter sido julgado! – Fico confuso e nesse momento chega um homem cabeludo.
-           Julgado?! – E ri de novo. – Eu nunca fui julgado e estou aqui há 37 anos! – O Barbudo e o Cabeludo parecem discutir.
-           Mas por quê?! – Pergunto impaciente. Os outros dois começam a se agarrar.
-          - Perseguição política, durante a ditadura militar... – Estão brigando.
-          - Então vou cair fora daqui, o mais rápido que der... Ninguém vê isso! – E aponto para os dois rolando na grama.
-          - Fugir?! – E ri nervosamente. – Ninguém vê nada aqui, para eles se nos matarmos será melhor. – Enquanto os dois brigam, a Descabelada aproveita, desce da árvore e foge.
-          - É, fugir! – Os dois percebem a fuga da mulher e param de brigar.
-          - Esqueceu que te disse que estou aqui há trinta e sete anos?! Quantas vezes você acha que tentei...É praticamente impossível... – O Barbudão e o Cabeludo correm na direção da mulher.
-          - O senhor não parece um prisioneiro... – Reparo no uniforme do Velho.
-          - Você fala isso por causa de minha roupa? Alguns privilégios pelos anos de casa... Há muitos anos não tento uma fuga, me comporto bem, então ganhei a gerência da lavanderia... – Aparece um novo homem no gramado.
-          - Os muros não são tão altos, não vejo seguranças, não parece difícil de fugir... – O homem começa a catar gravetos.
-          - É a camuflagem, o disfarce... Tente pular o muro que um atirador de elite numa daquelas janelas altas te derrubará... Ao redor, há vários seguranças disfarçados de pacientes... – O homem começa a juntar os gravetos num canto do gramado.
-          - O senhor disse que já tentou fugir... – O homem parece procurar alguma coisa no chão.
-          - Algumas vezes nesses anos todos. A primeira, logo no primeiro ano, minha esposa me mandava dinheiro escondido, subornei um dos guardas. Um carro ficaria estacionado perto do portão principal. Ele me venderia a chave, me deixaria chegar lá à noite, eu entraria no carro, aceleraria contra o portão, quebraria e fugiria até um ponto combinado, onde um barco me esperava. – O homem cata duas pedras.
-           Um barco?! – O homem leva a pedra para junto dos gravetos.
-          - Vai dizer que não sabe que estamos numa ilha? – Começa a bater uma pedra na outra em meio aos gravetos.
-          - Ilha?! Não parece...  – Começa a sair fumaça dos gravetos.
-          - Olha o cheiro da maresia no ar... – A fumaça cresce.
-          - Mas e aí, te pegaram? – Vejo uma pequena chama se levantar.
-          - Troquei a chave pelo dinheiro e consegui chegar até o carro, como o combinado. Quando liguei, o bicho não pegava e tinha dois guardas escondidos no banco de trás. Aí peguei seis meses de solitária... – A fumaça e o fogo parece atrair outros internos.
-          - Solitária?! – Todos se sentam em roda ao redor da fogueirinha.
-          - Um cubículo de um por um, sem janela, e uma porta de ferro, escuridão total...  Só uma pequena refeição por dia... – O homem que acendeu o fogo pega um graveto aceso e ergue.
-          Isso é desumano! – Todos gritam.
-          - Eu sou uma ameaça pro governo, instituições, família, igreja, e empresas... – O homem do fogo fala alto enquanto os outros ouvem.
-          - O que você fez? – O homem do fogo sai andando à frente com o graveto aceso.
-          - Eu era comunista... Guerrilha urbana... – Os outros o seguem.
-          - Mas isso já acabou, a ditadura, as perseguições... – O gramado fica sem ninguém novamente.
-           Acabou?  - Aparece um outro homem, com pedaços de tábuas na mão, serrote, martelo, pregos e rodinhas de rolimã.
-          Vocês não tem tv, rádio, aqui? – Ele começa a serrar as tábuas.
-          - Claro que não... Estamos completamente isolados... Depois quero que você me conte tudo, como é o mundo, a realidade lá fora... – Dois internos ficam curiosos.
-          - Pois te digo que não há por que te manterem preso mais... Vivemos hoje numa democracia... – Os dois internos chamam outros para virem ver.
-          - Vá dizer isso pra eles... Tentei fugir outras vezes... Na segunda, peguei um ano de solitária... Na terceira, dois anos...  Na quarta, quatro anos... Foi quando caíram todos os meus dentes... Uso essa barba pra dar uma disfarçada... Na quinta, oito anos...  Foi quando perdi parte da locomoção das pernas, por isso ando que nem um robozinho... É assim, sempre dobram a pena na fuga seguinte... – Os internos se acocoram ao redor do homem das rodinhas de rolimã.
-          - E de lá pra cá...  – O homem continua serrando.
-           Só mais uma vez... E fiquei dezesseis anos... Aí perdi a visão de um olho e parte do outro, o movimento das pernas e braços. Minha mulher nunca mais me visitou, nem meus filhos...  Aí, nos anos seguintes até hoje, fiquei me recuperando... – O homem construiu dois eixos de madeira, um na frente e outro atrás da tábua.
-          - E desistiu... – Encaixa as quatro rodinhas de rolimã nas pontas dos eixos.
-          - Rá, rá rá! – Olhou pros lados e deu uma banana com os braços – Ainda estou vivo, desgraçados! - Pega o martelo bate um prego e acerta o dedo.
-          - Não desistiu... – Bate de novo o martelo no prego, fixando-o na ponta de um eixo, à frente da rodinha.
-          - Estou há cinco anos trabalhando num plano de fuga... – Repete o procedimento para os três eixos restantes.
-          - Sério?! – Os internos ficam mais curiosos.
-          - E está quase na hora de eu tentar de novo... Mas dessa vez não tem erro. Já sou um velho de setenta anos, não desconfiam de mim, não me vigiam mais. Estou acima de qualquer suspeita... Por isso, não tem como dar errado. – O homem parece feliz com o resultado do trabalho.
-          -  Você vai tentar sozinho? – Senta na tábua central.
-          - Sim. Não há mais ninguém aqui que não tenha ficado louco com as torturas e os remédios... São um bando de dementes. Estou sozinho... – Tentar por o carrinho de rolimã em movimento com um dos pés.
-          - Eu ainda não fiquei louco... – Tenta com os dois pés.
-          - Você tentaria comigo, mesmo sabendo das solitárias? – Pede ajuda a um dos internos.
-          - Claro! Não tenho nada a perder... – O Barbudo se coloca à frente dos internos e se oferece.
-           Você não resistiria nem seis meses lá. Tem a sua vida a perder... – O Barbudo empurra as costas do homem no carrinho.
-          - A viver aqui, prefiro a morte. – O carrinho dispara gramado abaixo.
-          - Você é um cara de sorte. Fui com a tua cara. Acho que vou confiar em você... – Todos aplaudem.
-          Qual é o plano? – Saem correndo atrás do carrinho.
-          Há cinco anos, cavo um túnel embaixo de minha cama. O gramado fica novamente deserto.
-          Sério?! Mas como? E a terra? – Reaparece o homem do fogo, sendo carregado nos ombros pelos internos. Entre eles está o Cabeludo.
-           Cavo com colheres e facas de mesa. Enfio a terra nos bolsos e sapatos e depois jogo aí pelo gramado... Há cinco anos, todo santo dia. Já está pronto. – Colocam-no no chão com cuidado.
-           E por que não fugiu? – O homem do fogo senta-se sobre as costas do Cabeludo.
-          Esqueceu que estamos numa ilha? Saio toda noite pelo túnel até uma pequena mata que fica antes da praia. Estou construindo uma jangada. E também já está praticamente pronta.  Só estou juntando alimento não perecível e garrafas de água pra a travessia até o continente, que deve durar uma semana... Você encara?  - Enquanto isso os outros seguidores se ajoelham em frente ao homem do fogo, que pergunta algo.
-           Sim! – Respondem os seguidores em coro.
-          - Mas vai ter que fazer tudo o que eu mandar, sem tirar nem por... Você pode até ser assassinado... – O homem do fogo fala outra coisa.
-          - Eu não tenho escolha...  – Os seguidores batem com as mãos nos peitos.
-          - Vem comigo... – Levantam as mãos para os céus.
-          - Ah, qual o seu nome? – O homem do fogo chama alguém do meio dos seguidores.
-          - Francisco. Todos me chamam aqui de Velho Chico. – É a mulher descabelada, que se levanta e se senta ao lado do homem do fogo.
Levantamos do banco e Francisco me leva até o prédio onde fica seu quarto, em um corredor de dormitórios. Entramos, ele fecha a porta. Há uma cama com o forro fedendo a sujo, e cheio de manchas amareladas, cuja borda se arrasta no chão.
-          - Como aqui é cada um que limpa e arruma seu próprio quarto...  – Ele se senta na cama e começa a explicar  - Fiz um túnel no chão da  solitária. O túnel passa em baixo do muro e termina na matinha.
-          - Então vamos pegar o mantimento e dar o fora, agora! – Me empolgo.
-          - Calma aí apressadinho. Não é assim... Eu dou as ordens aqui... De dia, seríamos vistos na mata, na praia... Estou trabalhando nisso há cinco anos, tenho trinta e sete anos de casa, conheço essa ilha como a palma de minha mão... Eu estou no comando e você vai me obedecer ou tá fora... – Se irrita um pouco.
-          - Claro, claro, desculpa. O senhor tá certo... – Tento contemporizar.
-          Você é um menino afoito. Acha que é tão fácil assim? Pra fugir daqui, meu caro, é complicado, complexo. Muito complexo. Talvez seja o maior plano de fuga da história. Vai por Papillon no chinelo, percebeste? No chinelo!
-           Quem?
-          - Papillon, o francês. Não conhece?
-          - Nunca ouvi falar...
-          - Você é um principiante. Deixa pra lá...
-          — E vamos à noite, então?
-          — Tá começando a pegar o espírito da coisa. Vai ser de maneira meticulosa, sem precipitações, sem pressa...
-          - Sem pressa?
-          - O que são alguns dias, ou mesmo um ano, pra quem está aqui a trinta e sete?
-          - Tem razão...
-          - Talvez daqui a uma semana... Enquanto isso eu vou te explicar... – Sobe na cama, destarracha o globo do lustre e tira algo de dentro. - Está vendo esta roldana?
-          - Sim.
-          - Na noite marcada, a gente fará uma corda com os lençóis, levaremos até a casinha da solitária, amarraremos na tampa de concreto que estará tampando o túnel, passaremos pela roldana que já deverá estar fixada e ergueremos a tampa.
-           - Não tou entendendo, por que simplesmente não deixamos o túnel aberto.
-           - Você tá louco? Não sabe que sou o prisioneiro mais vigiado do presídio? Um guarda fica me seguindo dia e noite. Todos os meus movimentos são vigiados o tempo todo. Se a gente não tapa o buraco... Você não sabe a trabalheira que foi pra eu arrumar essa roldana e  escondê-la com esse lustre! Então me escuta: No final do dia marcado você se esconde no meu quarto. Essa é a primeira instrução. Agora vamos ensaiar como fazer. Torce e amarra dois lençóis, a famosa “tereza”. Passa a ponta do lençol por dentro da roldana, o nó se desfaz e ele cai no chão. Na segunda tentativa, ele reforça o nó, mas este fica grande e engancha na roldana.
-           Tá vendo, é por isso que a gente tem de ensaiar a fuga...
Saímos do quarto, saímos pelo corredor, contornamos o prédio até uma de suas alas que parecia abandonada nos fundos do edifício. É um pavimento independente, em formato de um dado, de laje sem telhado, sem janelas lembrando um cofre de alvenaria.  Um capim rasteiro crescido ressecava em frente à porta de ferro, e atrás está o muro.  Ele puxa a porta do meio, pesada e enferrujada, que se abre com dificuldade rangendo. A luz entra no cubículo escurosem janelas ou grades e revela um chão vencido pelo tempo e capim.
- Eis a solitária...
- Parece que não é usada há muito tempo...
-          Eu fui o último... Aqui eu fiquei dezesseis anos da última vez...
-          E como aguentou?!
-          É aí é que está... O pior tipo de prisão será o nosso caminho da liberdade...
Ele entra, e num canto da parede dos fundos, arranca uns pés de capim e com a ajuda de uma lasca de madeira, cavaca a terra sobre o piso. Vê-se, então, uma pequena tábua retangular e apodrecida...
-          Isso era a minha cama...
Ergue a tábua, e embaixo dela, além do piso de cimento, coberto de insetos e larvas, tem uma pequena depressão circular no piso. Com as mãos ele vai retirando pedaços soltos do piso, que estavam montados como se fosse um quebra-cabeça. Embaixo desses pedaços de cimento, há o que parece ser um pequeno quadrado de tábua. Ele a retira e revela-se um buraco.
-          Foi assim que aguentei todos esses anos preso aqui...
-          Um túnel?!
-          Que eu escavei com uma colher e uma faca de mesa, na escuridão, todos os dias durante uns trinta anos. Você deve está achando estranho uma solitária ser construída próxima ao muro. Mas atrás desse muro está uma formação de pedra bruta. A solitária foi construída justamente aqui pra não haver perigo de cavarem um túnel por baixo desse muro. Então tive que cavar do lado oposto, na direção do mar, atravessando debaixo de toda a extensão do presídio.
-          Caramba... - Olho pela porta da solitária e avisto ao longe um grupo vestido de branco. É o homem do fogo e a Descabelada, falando aos seguidores.
-          Pode parecer pouco pra trinta anos, mas eu só tinha um colher e minhas unhas, e o terreno é duro, o que por um lado foi bom, pois não tinha o perigo de haver desabamentos... –  Do lado oposto do gramado, onde está o Homem do Fogo, aparece um grupo empurrando e correndo atrás do carrinho de rolimã.
-          Mas o que o senhor fez com toda a terra que tirou daí? – Os dois grupos avistam-se e param o que estão fazendo.
-          Pros presidiários que não sabem, os guardas da prisão pregam que a solitária quando é fechada, só será aberta após o cumprimento da pena. Mas na prática, isso só acontece pra penas pequenas de até um ano. Além disso, eles sabem que ninguém sobreviveria sem um pouco de luz do sol e um pouco de caminhada por dia. Então pra que ninguém visse, no final da madrugada, um guarda vinha abria a porta e eu podia caminhar uns quinze minutos até os primeiros raios de sol. Foi isso que me fez sobreviver, pois é a hora mais bela, mais fresca, tranquila e transcendental do dia: O nascer do sol. Até hoje, não perco nenhum, nenhum dia. – Os dois grupos começam a avançar um em direção ao outro.
-          Mas e a terra? – Quando ficam à distância de dez passos, estancam a caminhada.
-          Eu escavava e ia enchendo os bolsos e a cueca e dormia com eles cheios. Então, saía e ia andando, com o guarda a uns dez metros de mim. Daí eu enfiava as mãos nos bolsos e ia empurrando a terra por um buraquinho na parte superior interna deles. E assim a terra ia caindo aos poucos por dentro da calça, sobre os meus pés e espalhada pelo chão. A da cueca ia caindo naturalmente. – O Homem do Fogo e o Homem do Carrinho se adiantam aos seus grupos e ficam frente a frente.
-          E o guarda nunca desconfiou? – Os dois homens parecem conversar.
-          Sempre era escuro e no por-do-sol ninguém ia ficar olhando pro chão... Foi o mesmo guarda durante trinta anos, depois ele se aposentou. Acho que me via como a um cão de estimação. Minha bunda e minha virilha deviam ficar bastante inchadas de terra, mas se ele desconfiava, ou sabia de alguma coisa, fingiu que não... Quem sabe torcia por mim? – Os dois homens começam a gesticular.
-          Mas cabia tanta terra assim nos seus bolsos? – Os dois homens parecem discutir ferozmente.
-          Eu cavava um palmo de túnel por dia, ou seja, 20 cm. Como você está vendo o buraco tem uns 50 cm de diâmetro, que é pouco maior que a largura do meu ombro. Vinte centímetros todo dia, vezes 365 dias por ano, durante 30 anos dá pouco mais de dois quilômetros de túnel... O final dele deve sair dentro da mata, já perto da praia... – Os dois homens retornam cada qual para seu grupo.
-          Deve sair? –  Os dois homens agora parecem dar ordens nervosamente a seus seguidores, apontando para o grupo oposto.
-          Pelos meus cálculos, falta cavar só meio palmo de terra pra fazer o buraco de saída, que deixei pra fazer só no dia da fuga, pra não chamar a atenção... – Agora os dois grupos correm para o confronto.
-          Quando o senhor terminou o túnel? ...Olha aquilo! – Acontece uma pequena guerra campal. O Homem do Fogo ataca os inimigos com o graveto incendiado e o Homem da Rolimã tenta atropelar seus oponentes, enquanto os seguidores se enfrentam a socos e pontapés.
-          Há uns sete anos... – O graveto do Homem do Fogo se apaga.
-          E por que não fugiu ainda? – O Cabeludo, que estava lutando do lado dos seguidores do Homem do Fogo, muda de lado e parece agredi-lo.
-          Esperando a hora certa, a oportunidade ideal, fazendo os últimos preparativos, pois a fuga não pode ser de dia, de noite durmo trancado e também estava esperando um cúmplice pra me ajudar, e ele pode ser você. – Os seguidores do Homem do Fogo, incluindo ele, começam a fugir correndo. Os seguidores do Homem da Rolimã comemoram aos berros.
-          Platão venceu Aristóteles... Tou nessa! Condé que a gente começa? – O Cabeludo agarra a Descabelada pelos cabelos.
-          Fica frio, não é assim... Pra começar nossos quartos ficam no segundo andar... Temos de fugir à noite... – O Barbudo vê e ataca o Cabeludo.
-          A gente espera eles dormirem e sai dos quartos, caminha até aqui... – O Homem da Rolimã vai em direção aos dois, acompanhado dos seguidores.
-          Ei filho, você não está numa novela pra tudo acontecer fácil assim...  – O Homem da Rolimã aparta a briga.
-          Os quartos ficam trancados? – O Homem da Rolimã puxa a Descabelada consigo.
-          Não, mais aí é que está o problema... – Ele monta em seu carrinho com ela na garupa.
-          Problema? – O Cabeludo e o Barbudo se unem para empurrá-los.
-          Sim, temos que inventar uma desculpa pra eles trancarem nossos quartos à noite... – O carrinho corre pelo gramado com os seguidores atrás, até sumirem depois de uma pequena elevação.
-          Trancarem?  - O gramado está deserto novamente.
-          Óbvio! – O velho arregala os olhos.
-          Mas por quê? – Pergunto sem entender.
-          Pra que relaxem a vigilância sobre nós, pra que não despertemos suspeitas e porque têm vigias no corredor de noite.
-          Então a gente vai ter que fazer umas terezas e descer pela janela...
-          Claro que não! Já te disse que você não está em um filme... Dois idiotas pendurados em lençóis amarrados. E se o lençol rasga? Vamos abrir nossas portas com uma chave mestra que eu roubei e fugir pelo corredor...
-          Mas eu não tenho uma chave...
-          Eu faço uma cópia e mando entregar no seu quarto dentro de um pão que preparei na cozinha. Fica ao lado da lavanderia e sou amigo das coiznheiras.
-          Mas por que não me dá a chave pessoalmente?
-          Esqueceu que todos os meus movimentos estão sendo vigiados? Agora mesmo alguém deve estar nos observando. E também ainda não fiz a cópia.
-           Mas e o guarda que fica no corredor à noite?
-          Vamos rendê-lo com revólveres de sabão que eu estou esculpindo...
-          Render? Com sabão? O senhor está velho e cego, eu sou um feixe de ossos, vamos enfrentar um guarda armado? Não é menos perigoso fugir pela janela?
-          O plano é meu e eu estou no comando. Sei o que é menos e mais perigoso. Você chegou agora...  E o guarda será importante na segunda parte do plano... Tá dentro ou tá fora?
-          Ok, ok.
-          Então eu abro minha porta depois vou até o seu quarto abro, e a gente rende o guarda...
-          Daí a gente amarra o guarda e sai pela portaria...
-          Não é que você seja burro, mas tem pouca experiência... Amarra o guarda? Sai pela portaria? Na portaria fica um segurança... E temos de levar um refém...
-          Mas por que temos de ter um refém?
-          Se a gente topa com guardas no pátio?
-          Mas ainda a gente nem chegou ao pátio... Por onde a gente vai sair? Pelo subsolo?
-          Agora será pela janela...
-          A gente desce pro térreo e pula a janela...
-          Quase... Na verdade, a gente vai subir pro terceiro e desce pela janela de lá.
-          Do terceiro?! Mas você não queria nem descer pelo segundo?!
-          A janela dos nossos quartos são muito vísiveis. Além disso seria muito óbvio e não podemos deixar o guardar deduzir nossos planos... Há um quarto no terceiro andar que está vazio e fica do lado mais escuro do prédio. Do lado de sua janela desce o fio terra do pra-raios. Desceremos por lá...
-          E o guarda?
-          Descerá junto?
-          E se ele se recusar?
-          A gente ameaça jogar ele lá de cima...
-          Então aí a gente corre com ele até a solitária...
-          Escuta filho: Eu elaborei, desenvolvi e aperfeiçoei esse plano durante 37 anos. Provavelmente é o maior plano de fuga da história! Eu pensei e treinei os mínimos detalhes, e me preparei até pra os imprevistos mais improváveis... Até se o guarda peidar, eu sei o que fazer, entendeu?
-          Entendi.
-          Então só escuta tá? E presta bastante atenção...
-          Tudo bem.
-          Daí, quando a gente descer, a gente vai pra a portaria?
-          Pra portaria?! Mas pra quê?! Não tem um guarda lá?
-          Justamente, vamos garantir que ele não vai nos ver atravessando o pátio até a solitária. Vamos drogá-lo com um monte de calmantes que eu fingia que tomava e fiquei guardando.
-          Mas aí que ele vai nos ver e dar o alarme!
-          É isso que pensaria uma mentalidade mediana. Mas pra isso eu tive uma idéia genial. Nós dois estaremos vestidos de mulher!!!
-          De mulher?!
-          Como você achou que íamos conseguir render primeiro guarda no nosso corredor.
-          Com os revólveres de sabão.
-          Isso não bastaria. Ele veria dois prisioneiros vindo em direção dele e passaria fogo. Eu roubei na lavanderia dois uniformes femininos e catei e juntei durante esses anos como gerente de lá, milhares de fios de cabelos de mulher, que juntei com meus pentelhos, que eu cortava e fiz duas perucas.
-          Perucas de pentelho?!
-          É! E roubei batom, lápis de olho, sombra, blache, meias-calças e dois sapatos de salto alto...
-          Mas precisa de tudo isso?
-          Um plano perfeito exige que tudo seja feito com perfeição, não pode dar margens falhas. Os guardas têm de certeza que somos mulheres o tempo todo.
-          Tá, mas como renderemos o guarda da portaria?
-          Elementar, meu caro. Iremos abraçados com o guarda que fizemos refém. Eu estudei a psicologia do guarda da portaria. Ele vive sonhando em pegar suas colegas. É um tarado! Quando vir a gente, vai achar que o dia dele chegou, que vai ter uma noitada, vai se distrair e...
-          A gente rende ele.
-          É, mas pra evitar que o nosso refém grite, ou faça alguma mímica pra dar o alarme, você virá beijando ele na boca.
-          Na boca?
-          Óbvio!
-          Por que eu e não o senhor?
-          Por que eu estou no comando e eu é que vou seduzir o outro guarda e colocar calmante na bebida dele.
-          Seduzir? Bebida? Mas por que não rendê-lo com as armas de sabão?
-          Isso só em último caso. Na portaria estará claro e ele pode perceber que são falsas.
-          E se ele perceber que você não é mulher.
-          Impossível. Eu treinei durante anos a voz, o jeito de falar e de andar de uma mulher.
-          Tudo bem, mas e a sua cara? A barba o senhor vai fazer, mas o senhor tem esse olho cego, tem muitas rugas... Não dará uma mulher muito atraente...
-          É, talvez seja melhor você seduzir o porteiro e eu ficar com o outro... Então você vai ter de usar as lentes de contatos verdes que roubei.
-          Lentes de contato?
-          É, nenhum porteiro resiste a uma morena com olhos verdes.
-          Mas eu sou branquelo...
-          Vai ter de começar a pegar um bronze... É melhor até tirar a camisa... Então você vai e bota os remédios na bebida dele.
-          Que bebida?
-          A que amoitarei no balcão da portaria. Eu conheço o cara, ele gosta de uma branquinha. Então descobrirá a garrafa, encherá a cara e facilitará as coisas pra gente...  Aí é só por os comprimidos no copo dele.
-          Mas e se ficar amargo, e se não dissolver?
-          É, realmente, pode ser mais eficiente você colocar os compridos na sua boca, passar pra a dele num beijo, e empurrar pela garganta dele com a língua...
-          Não, não, pode deixar. Vou moer os comprimidos e botar o pó na bebida. Deixa comigo.
-          Você é que sabe... Então aí sim, vamos amordaçá-los e amarrá-los... Mas agora estou pensando que vamos precisar de uma serrilha cirúrgica...
-          Mas pra que precisamos de uma serrilha cirúrgica?
-          Ora, pra serrar os pés dos guardas...
-          Serrar os pés?! Mas pra que essa crueldade, não basta amarrá-los?
-          Crueldade foi o que fizeram comigo... Eu pensei em tudo: Se conseguirem se soltar, não poderão vir atrás da gente.
-          Mas onde vamos conseguir uma serrilha cirúrgica?!
-          Bem isso, é um problema. Podemos construir uma ou podemos prescindir desse detalhe.
-          É melhor prescindir...
-          É, mas será uma mácula no meu plano perfeito. E se algo der errado por conta disto, não poderá me culpar de nada...
-          Combinado...
-          Aí sim. Depois de amarrarmos os guardas correremos até a solitária. A porta deverá estar escancarada. Daí tomaremos impulso e saltaremos sobre a armadilha, caindo dentro da solitária?
-          Armadilha?! Que armadilha?!
-          O buraco que cavaremos rente à porta da solitária e cobriremos com gravetos e folhas. Acho que dois metros de largura por dois de fundura é suficiente?
-          Suficiente?
-          Tem razão. Talvez três de fundura seja mais garantido pra quebrar a perna dos guardas que nos seguirem...
-          Mas não vão nos seguir...
-          Escute filho: Eu conheço essa prisão. Mesmo com todos os meus cuidados, alguém poderá dar o alarma e outros guardas nos seguirão. Não podemos confiar no acaso ou no destino. O acaso e o destino é que me trouxeram aqui e me prendeu até hoje. Não podemos correr riscos de me pegarem de novo. Só tenho uns poucos anos de vida pela frente. Não quero morrer em outra solitária...
-          Mas isso demorará uma eternidade... E onde conseguiremos pás e picaretas?
-          Bom, eu sozinho cavei um túnel de mais de dois quilômetros com uma colher. Por que dois homens não conseguirão cavar um buraquinho com duas colheres?
-          Com duas colheres?
-          É claro! O local aqui está bem escondido pelo mato, mas uma pá ou picareta fariam barulho, enquanto cavamos...
-          Mas e a terra? Vamos enfiar nos bolsos e soltar no pátio? Vai levar mais trinta anos?
- Deixe de ser tolo. A terra jogaremos atrás da solitária.
-          Mas em quanto tempo vamos terminar isso?
-          Bem, se trabalharmos de manhã e à tarde, parando pra o almoço, com sorte deve levar uns nove meses.
-          Nove meses? Mas isso dá pra fazer e nascer um filho!
-          Bom, pra quem esperou 37 anos, o que são nove meses. E se vem no nosso encalço, algo deve impedi-los ou atrasá-los de entrarem na solitária, além das cascavéis e das outras armadilhas.
-          Cascavéis? – E olhei aterrorizado pra o chão e pra os lados.
-          Calma, calma. De dia, ficam quietas aí nessas moitas. E, além disso, são de estimação...
-          Como de estimação?
-          Há sete anos quando saí daqui, eu percebi que algumas cobras saíam da mata ao lado e entravam aqui. Então tive a brilhante ideia de capturar, alimentar e adestrar alguns filhotes. Então elas me conhecem.
-          Mas as cobras não são cegas?
-          Enxergam mal, mas reconhecem o meu calor.
-          Tem certeza de que não tem nenhuma por aqui... Como adestrou cobras?
-          A biblioteca daqui é boa...
-          Mas como vamos usá-las?
-          Na manhã da noite da fuga, prenderemos elas num saco e...
-          Prenderemos? O senhor prenderá... Eu morro de medo de cobras, ainda mais cascáveis...
-          Posso até tentar, mas são muitas e posso não conseguir sozinho.
-          Muitas, quanto?
-          Dezessete. E todas têm um nome.
-          Caramba! E estão aqui ao redor? Como vamos por isso tudo num saco?
-          Eu vou pegando e você fica abrindo e fechando a boca do saco pra não deixar sair as que eu for colocando...
-          Mas e se me picam?
-          Não tem perigo, lido com elas há sete anos.
-          Mas pra que tanta cobra, meu Deus? Não basta uma ou duas?
-          Não. Porque uma parte vamos jogar dentro da armadilha e a maior parte dentro do túnel.
-          Dentro do túnel?! O senhor ficou...
-          Calma, não se precipite nem pense besteira. Quando vierem atrás da gente, os guardas que correrem na frente cairão na armadilha, pelo menos uns três, espero. Alguns se machucarão ou serão picados. Mas os que vierem mais atrás não cairão. Pularão a armadilha e entrarão na solitária. Ali encontrarão mais umas cinco cobras, que soltaremos ao entrarmos no túnel.
-          Ah bom, achei que era dentro do túnel.
-          Dentro do túnel penso em soltar umas sete. Cinco na armadilha, cinco na Solitária e sete dentro do túnel...
-          Mas como...
-          É óbvio que entraremos com o saco dentro do túnel, deixaremos ele aberto atrás de nós, enquanto seguimos em frente. Quando os guardas restantes entrarem no túnel... Pimba!
-          Mas e se elas vierem atrás de nós e pimba! As cobras são rápidas em buracos, eu sei. Muito mais rápidas que nós. Vivem a vida inteira em buracos.
-          Pensando por esse lado, talvez seja melhor você entrar na minha frente dentro do túnel...
-          Como talvez?! É claro que eu vou na frente. Eu que não vou ficar pra trás soltando as cobras no túnel?
-          Você venceu dessa vez, filho. Eu irei atrás de você e não deixarei minhas amigas me ultrapassarem. Mas uma coisa me preocupa...
-          O quê?!
-          Eu já estou fraco e não sei se conseguirei entrar no túnel, segurando um saco cheio de cobras e ao mesmo tempo puxar a bigorna pra tapar a entrada dele...
-          Bigorna?!
-          Sim, mais uma dificuldade pros guardas.
-          Mas aqui tem uma bigorna?
-          Strictu senso não. Mas tem um blocos de concreto jogados por aí, que podem servir e você terá que arrastar um pra cá, qualquer noite dessas...
-          Eu? De noite?
-          Eu é que não aguento... Ah, e não se esqueça de enquanto cavarmos a armadilha, deixe pra usar o banheiro aqui dentro da Solitária.
-          Como assim?
-          Guarde o número dois pra fazer dentro da Solitária...
-          Número dois?
-          Segura a bosta pra tu cagar aqui dentro! Assim os guardas pisarão e quando entrarem no túnel talvez não aguentem o fedor. Temos de dificultar ao máximo.
-          Essa parte vai ser fácil... Vamos ficar trabalhando aqui o dia inteiro... Mas não sentirão nossa falta durante o dia?
-          Apareceremos pra almoçar, lanchar e, além disso, tem os bonecões...
-          Bonecões?
-          Óbvio! Costuraremos bonecos de nós com sacos de estopa, em tamanho natural e encheremos de areia... Aprendi a costurar e fazer bonequinhas de pano nas oficinas de terapia ocupacional... Fazer um grande é a mesma coisa...
-          Mas o que que a gente vai fazer com isso?
-          Elementar, meu caro. Deitaremos eles sobre nossas camas durante o dia e cobriremos com lençol, pra pensarem que estamos dormindo. De noite, guardaremos eles embaixo da cama. E depois, eles serão úteis no dia da fuga.
-          Como assim?
-          Eles se passarão por nós. No dia, posicionaremos eles atrás dessa árvore como se estivessem armados e prontos pra atirar com os revólveres de sabão. Isso atrasará os guardas. A gente pode por umas bombinhas de são joão...
-          Cheios de areia ficarão pesados pra arrastá-los na noite da fuga, não?
-          Não pesarão mais que 50 quilos...
-          Puta merda! (...)
-          (...)
-          Deixa pra lá... Acho que estarei forte até lá, de tanto me exercitar no buraco.
-          Lógico!
-          Então aí acaba, né? Aí a gente foge!
-          Calma lá. Ainda temos de espalhar as falsas pistas.
-          Falsas Pistas?
-          Óbvio! Se a gente conseguir escapar, temos de deixar falsas pistas da fuga. Eles perderão tempo procurando a gente em outros lugares... Além do que eles têm serviço de inteligência aqui e precisamos despistá-los...
-          Mas dê um exemplo.
-          Sabe o  pão que farei e colocarei a chave dentro pra você? Mandarei entregar junto com uma falsa pista...
-          Como assim?
-          Na cozinha eu pego trigo, água fermento, faço uma massa de um metro, boto uma espada de plástico dentro, asso e mando entregar no teu quarto.
-          Uma espada de brinquedo dentro de um pão de um metro ao lado de um bolinho? Não vai chamar muito a atenção?
-          A ideia é essa. Eles nem vão ligar pro pão. Vão confiscar o pãozão.
-          E aí encontram a espada de plástico, e o que vão pensar de mim?
-          Vão imaginar qualquer coisa que não seja o nosso plano de fuga. Que você tá louco...
-          E aí fim, né?
-          Que nada! Não se esqueça de que é um plano arquitetado durante trinta e sete anos. Tem mais...
-          Mais o quê?
-          Pode começar a escrever os textos.
-          Textos?
-          Lógico! Putz, mas será que eu tenho que te ensinar tudo? Os textos pra o teatrinho.
-          Teatrinho?
-          O teatro que vamos armar com os pacientes.
-          Mas pra que isso, pô?
-          Uma semana antes da fuga, vamos aprontar um escárceu aqui pra desviar a atenção da guarda. Vamos deixar todos os pacientes excitados, enfurecidos, loucos varridos. Então você escreve as falas, com bastantes indecências, palavrões, xingamentos à direção, e eu organizo o teatro, faço a produção, arranjo os atores,  a música... Que tem que ser heavy metal, bicho, pra deixar a galera piradona... A ala dos dependentes químicos...
-          Mas eu não sou dramaturgo...
-          Nem precisa. Basta escrever coisas sem sentido com muita putaria, imoralidades, incestos... E à medida que você for escrevendo, eu vou distribuindo as folhas aos internos. Cada um vai ter uma e todos vão ensaiar e dizer as falas ao mesmo tempo. Vai ser o inferno!
-          Cada um? Mas são quantos são os internos?
-          Uns cem.
-          Eu vou ter de escrever cem folhas?!
-          Não se importe com a qualidade, nem originalidade. Não se preocupe em ficar repetitivo. Não vai haver crítica...
-          Mas quando vou escrever isso? De dia vou tá cavando o buraco.
-          À noite, oras.
-          À noite vou estar pregado.
-          Papillon dormia só duas horas por noite, quando precisava.
-          Mas eu não sou Papillon.
-          Mas está numa merda pior que a dele... E tem que sair dela...
-          O que é um peidinho pra quem tá cagado, né?
-          E tem que escrever isso logo, porque depois eles vão te trancar no quarto. Aí você continua a escrever, fazer aviõesinhos com as folhas e jogar pela janela.  ...O ideal seria que passasse uma canaleta dágua no chão de seu quarto, que saísse no pátio e você fizesse barquinhos de papel. Mas deixa pra lá... ...Aí vão confiscar suas canetas, seus papéis... Mas aí você começa a escrever nos lençóis.
-          Nos lençóis? Mas com quê?
-          Com sangue, oras!
-          Com sangue?! O senhor tá doido?
-          Mais respeito, meu rapaz. Em casa de enforcado, não se fala em cordas...
-          Desculpa.
-          Você não conhece a história do Marquês de Sade?
-          Não.
-          Quando o proibiram de escrever na cela, ele passou a escrever nos lençóis com sangue e uma agulha.
-          Mas eu vou precisar de uma transfusão desse jeito. E sofro de lipofobia, nem posso ver agulha...
-          Não se preocupe. Depois que você escrever o primeiro lençol e jogar pela janela, os internos irão à loucura e a guarda vai te trancar no quarto e confiscar tua agulha, teus lençóis e tuas roupas.
-          Mas eu vou dormir com o quê? Tá frio! E por que sou eu que tenho que fazer essa parte?
-          Por que eu sou o cérebro e você as mãos. E além disso vou estar ocupado pensando outras artimanhas.
-          E quanto tempo vou ficar pelado e preso dentro do quarto?
-          Poucas semanas. Isso vai ser no finalzinho.  A essa altura nossa armadilha já estará pronta. Aí no dia da fuga eu mando te entregar o pão com a chave. Tu abre, eu te passo o vestido, a maquiagem, o revólver de sabão... O bonecão de areia já vai estar embaixo da cama...
-          Mas o que eu vou ficar fazer esse tempo todo, pelado e preso do quarto? Vou enlouquecer...
-          A ideia é essa. Eles tem que pensar que você está louco, pra não desconfiarem do nosso plano. E pra reforçar isso você passa a escrever nas paredes.
-          Mas com o quê?
-          Com o dedo e as fezes, ora.
-          O que?!
-          Realmente você é um principiante.
-          Mas não pode ser um pedaço de carvão.
-          Não. A ideia é deixar teu quarto tão fedido que nenhum guarda vai querer entrar lá.
-          Mas nem eu vou aguentar ficar lá!
-          Aguenta. É melhor escapar fedido, que ser um preso limpinho durante a vida inteira. E você acha que o Marquês de Sade tinha uma churrasqueira na cela com carvaozinho? E ele era um Marquês, cara. Se ele aguentou... E eu vou arranjar algo pra você distrair, enquanto estiver preso no quarto. A melhor companhia pra um preso: Um instrumento musical. Acho muito poético um velho preso tocando sua gaitinha de boca, dedilhando um blues num violão, como um velho escravo a beira do mississipi. Eu te arranjo um instrumento. O que você toca?
-          Só aprendi a tocar zabumba e tantã.
-          Isso não é lá muito romântico, mas eu consigo. Mas o importante é parecer que você está mal, que está tendo crises de depressão profunda intercaladas com euforia extrema. Assim nunca vão desconfiar que você tem um brilhante plano de fuga e se caso te vejam correndo no dia da fuga, talvez não atirem pra matar.
-          Pra matar?!
-          É, mas o importante é você chorar muito, quase estiver na presença de alguém, tocando sua gaitinha, digo zabumbinha...
-          Mas como eu vou conseguir chorar tocando zabumba pelado?! No máximo eu vou ter uma crise de risos!
-          Eu te mando umas cebolas cruas dentro da sua marmita. Sempre que você ouvir passos, você mastiga uma inteira...
-          Eu consiguiria mastigar uma cebola.
-          Tudo bem, um pozinho de caco de vidro moído embaixo das pálpebras vai fazer você chorar sangue e dar um efeito muito mais dramático. Vão achar que você é santo... Seria lindo e iria entrar pra história um preso cego que conseguiu fugir da prisão.
-          Pode mandar as cebolas na marmita.
-          Você que sabe...
-          Tá, tá, e aí acabou né?
-          Quase.
-          Put...
-          Falta a gente combinar o que a gente vai fazer quando sair do túnel do outro lado, quando descobrirmos onde saímos.
-          Você não sabe onde vai sair?
-          Tenho uma ideia.
-          Uma ideia? Você não disse que ia sair perto da praia?
-          Eu sempre tentava cavar rumo ao leste na direção do mar... Mas sabe como é, né? A escuridão lá embaixo, alguma pedras de que eu tinha de desviar...
-          Tudo bem. Quando a gente começa?
-          Hoje mesmo. Na hora do almoço, daqui a pouquinho a gente rouba os talheres e volta pra cá, pra começar o buraco da armadilha.
-          Então, depois do almoço, começamos executar nosso plano, ou aquela loucura. Mas eu não tinha escolha. Trabalhamos dia e noite durante meses seguidos, começando com o roubo dos talheres e cavando a armadilha, e evacuando dentro da solitária. Ao mesmo tempo fixamos a roldana no teto da solitária, costuramos os bonecões de areia e sacos de estopa. O Velho fez a cópia da chave mestra, arranjou as perucas de pentelho e os vestidos, sapatos de salto alto e as maquiagens de mulher, a garrafa de bebida pra por os calmantes, e alimentava as dezessete cascavéis com ratinhos que pegava numa ratoeira, além de uma zabumba. Sozinho e a muito custo escrevi as cem folhas com textos obscenos para o teatrinho, às quais tive que depois transformar em aviõesinhos e jogar pela janela. Depois escrevi num lençol utilizando uma agulha e sangue do dos dedos, o que quase me levou a desmaios, e em seguida passei a escrever nas paredes com meus dedos e minhas fezes, além de mastigar cebolas para fingir que chorava na presença dos guardas e enfermeiros.
  E finalmente chega o grande dia da fuga. Recebo logo pela manhã da cozinha um pão de metro com uma espada de plástico dentro. Durante o dia, ajeito o bonecão de areia em baixo das cobertas, passo a maquiagem e coloco a peruca. Ainda pelado, preparando o vestido, batem à porta. Abro a porta e entra uma comissão de seguranças, psiquiatras e enfermeiros. A minha primeira reação é por as mãos em minhas vergonhas. A primeira reação deles é taparem os narizes diante do fedor insuportável das fezes nas paredes.
-          Eu não falei pro senhor doutor? Está cada dia pior... – Diz o vigia do meu corredor.
-          Coloquem uma roupa nesse homem, pelo amor de Deus – Pede um dos psiquiatras apertando o nariz com os dedos. Mas ninguém tem coragem ou estômago de pegar o vestido.
-          O curioso é que era um caso simples, quando ele chegou. Coisa de uma semana pra receber alta. – Fala o segundo psiquiatra.
-          Uma semana? Ele já tá aqui há nove meses e cada dia pior. – Acrescenta um enfermeiro lendo um prontuário.
-          O que pode acabar com a imagem da nossa Casa de Saúde... E esse pão gigante aí em cima da cama? – Pergunta o terceiro psiquiatra. Um segurança pega o pão.
-          Ainda tá quentinho. – Comenta o segurança.
-          Foi um amigo dele que mandou entregar. O velho Chico. – Intervém o vigia do corredor.
-          Também com um amigo desses. O incurável Chico... –  Os psiquiatras se entreolham.
-          O que é aquilo ali no canto?  - Pergunta o primeiro psiquiatra.
-          Uma zabumba, doutor – Responde o vigia – Ele adora tocar zabumba pelado mastigando cebola.
-          Mas era um senhor respeitável, até sofrer o acidente e perder a memória. – Comenta o segundo psiquiatra.
-          Eu nunca vi isso em toda a minha carreira. Um paciente perder a memória e depois assumir uma outra identidade, esquisofrênica. – Analisa o terceiro psiquiatra.
-          Talvez era um homossexual reprimido e quando perdeu a memória, exteriorizou seus desejos. – Propõe o psicólogo.
-          Ah, não, bicha não! Já me chamaram esquisofrênico! Chega, agora eu vou falar... – Desabafo desesperado ajeitando a peruca, mas lembro das minhas vergonhinhas expostas e volto a cobri-las com as mãos.
-          Aplico a injeção agora, doutor? – Pergunta o enfermeiro.
-          Não, não deixe-o falar. – O primeiro psiquiatra tira os dedos do nariz para falar. – Põta que pareõ! - Mas volta a tapá-lo rapidamente. Narro parte da estória, escondendo detalhes que poderiam evidenciar minha suposta loucura, explico o mal entendido e como fui enganado pelo velho Chico.
-          E por que o senhor ficava escrevendo obscenidades em aviõezinhos? – Pergunta o segundo psiquiatra.
-          Foi ideia do Chico...
-          E você o obedecia cegamente? – Complementa o terceiro psiquiatra.
-          Veja bem doutor, eu sou um homem desmemoriado. Me agarrei à primeira pessoa que me deu uma explicção para a realidade.
-          Parece plausível... – O psicólogo parece me dá um voto de confiança.
-          E por que o senhor começou a escrever com sangue nos lençóis para jogá-los pela janela? – Indaga o primeiro psiquiatra.
-          É por que me cortaram o suprimento de papel... – Os psiquiatras se entreolham de cara fechada, dessa vez não fui convicente nem pro psicólogo. Então tento melhorar a resposta. – Veja bem, o sangue representa minha essência vital, escrever significa que estou tentando expressar algo. Escrever com sangue representa a tentativa de expressar, de recuperar minha essência perdida, ou seja, minha memória.
-          Parece fazer sentido... – O Psicólogo tira a mão do nariz e a põe no queixo.. – Põta que pãreõ! – Imediatamente tapa de novo o nariz.
-          - E o que isso tem a ver com tocar zabumba pelado, chorando e declamando a Balada do Cárcere de Oscar Wilde? – O segundo psiquiatra me põe contra a parede...
-          Veja bem, eu me sentia muito solitário, eu precisava de um instrumento musical para amenizar minhas noites de solidão.
-          Mas uma zabumba?! – Exclamam os três doutores.
-          Eu achava mais apropriado uma gaitinha de boca, mas eu só sei tocar zabumba. E com a gaita de boca também não dava pra declamar Wilde e tocar ao mesmo tempo, né? Eu precisava expressar minha dor, meu sofrimento interior, recalcado... – E encaro o psicólogo, que acena positivamente a cabeça, comprimindo as pálpebras num olhar profundo. – O fato de estar pelado é que, bem, me levaram as roupas para eu não escrever mais nelas...
-          Pois muito, bem! – O terceiro psiquiatra parece irritar-se. – Quero ver o senhor explicar essa merda toda na parede! – Tira o dedo do nariz para apontar as paredes. – Puta... Ê êsse fêdõr ensupõrtãvel! – Tapa o nariz com as duas mãos.
-          Veja bem... Me levaram os papéis, os lençóis e as roupas...
-          Sei, tô sabendo! – Reclama o primeiro psiquiatra.
-          E quando eu perdi a memória, foi como nascer de novo... Como eu nasci de novo, tinha de passar pela fase anal...
-          Fase anal! – Enfatiza o psicólogo.
-          Mas precisa desenhar caralhinhos de asas nas paredes?!  - Questiona o segundo psiquiatra.
-          É, caralhinhos voadores!! – Realça o terceiro psiquiatra.
-          Sim, caralhinhos alados! – Conclui o primeiro psiquiatra.
-          Vejam bem senhores... A sexualidade está na base de todo o desejo humano...
-          Sexualidade! – Enfatiza o psicólogo...
-          Então, a repressão sexual...
-          Tá, tá, tá! – Me interrompe o segundo psiquiatra.
-          Não vamos nem questionar sobre o seu hábito patológico de mastigar cebolas cruas e verter lágrimas, quando toca zabumba e declama Wilde! Mas não sei se o senhor notou, mas está travestido de peruca ouriçada, batom, sombra, lápis, enfim... O que eu quero lhe perguntar é se por acaso o senhor é viado? – O terceiro psiquiatra, com ar de cansado, senta na minha cama... – Mas que volume é esse? Quê qué isso? – E tira os lençóis do bonecão de areia.
-          Parece ser o amante dele! – Sugere o enfermeiro.
-          Então repito a pergunta: O senhor é viado ou louco ? – Repete o terceiro psiquiatra.
-          Tá bem, tá bem. Sou viado! Sou uma bichona! Desde criança visto as roupas das minhas irmãs e fiz esse bonecão  afro-descendente para me saciar! Mas não sou louco! E como não se prende viados em hospício, os doutores vão me liberar não é?
-          Liberar?! – O três psiquiatras colocam a mão na cintura. – Fora de propósito! – Comentam entre si.
-          Sem contar as terezas de lençóis que encontramos na janela do terceiro andar... – Entrega um segurança.
-          Aquilo foi obra do Chico! – Tento me safar.
-          E essas colheres sujas de terra embaixo da cama? O senhor anda comendo terra?
-          Não, não, eu posso explicar... Escutem se vocês vierem comigo, lá fora eu posso lhe mostrar umas coisas e vocês vão entender tudo...
-          Só se for agora! – Decide o vigia. – Ninguém tá aguentando esse fedor mais. A gente precisa respirar!
-          Então vista sua roupa... Seu vestido, senhor ou senhora, sei lá! – Ordena o primeiro psiquiatra.
-          Eu vou comer esse pão antes que fique fedendo também... Tá quentinho... – O enfermeiro parte o pão, revelando a espada de plástico...
-          Mas que diabos!! O senhor vai ter muito o que explicar... – Comenta o segundo psiquiatra.
Começo vestindo a calçinha (o Chico era muito detalhista). De costas pra todos, escondo o revólver de sabão dentro dela.
-          O que é isso aí dentro de sua calcinha? – Interroga o segurança.
-          É, sabe como é, né? Eu pelado, no meio de tantos homens, né? Tive uma ereção!
-          É um pervertido... – Sussurra o psicólogo. – Mas não é louco...
-          Visto o vestido, calço os salto-altos e saímos. Quando chegamos à portaria, o Chico, também vestido de mulher, está bebendo e aos beijos com o porteiro, que ao nos avistar fica atônito sem saber o que fazer.
-          Outra bichona! – Cagoeta o vigia.
-          Chico, até você?! Depois de 30 anos?! Se revelar assim?! – Se espanta o primeiro psiquiatra.
-          É possível, é possível... – Contemporiza o psicólogo.
-          E você seo Antônio... Um senhor de idade, cheio de netos! - Se espanta o segundo psiquiatra.
-          Eu pensei que era muié de verdade! Eu juro! – O porteiro se desespera. – Ele me embebedou...
-          Para trás bárbaros!!! – Grita o velho Chico, apontando-lhes o revólver de sabão. Aproveito e saco o meu revólver da calcinha e rendo o segurança e o vigia.
-          Mãos ao alto! – Grito. Enquanto isso o porteiro começa a cochilar. Chico chega ao meu ouvido e sussurra:
-          Mas levá-los até a armadilha... E vê se conjuga os pronomes corretamente, senão estraga a cena...
-          Vamos andando, todos com as mãos na cabeça! – Grito.
-          Mas o porteiro apagou! – Clama o enfermeiro.
-          Então você o carrega! – Ordena Chico. – E vocês aí carregam meu arquétipo!
-          Quem?
-          A minha escultura, o meu modelo, o sósia, arre! O bonecão de areia que está lá fora!
-          Mas lá fora está chovendo! – Os psiquiatras pedem clemência.
-          É melhor escapar ensopado e com vida, do que morrer sequinho! – Chico faz mais uma frase de efeito. – Vamos andando seus fascínoras! E de olho neles, rapazes!
-          Tem mais alguém do nosso lado Chico? – Pergunto.
-          Não estraga... – Chico fala entredentes.
Enquanto os reféns iam andando à frente, dois carregando o bonecão do Chico e dois levando o porteiro, nós íamos atrás apontando-lhes os revólveres... De sabão! Lembrei. De sabão e está chovendo! Quando olho pra minha mão e a do Chico, só vejo um monte de espuma branca.
-          Psssst. – Chico me pede pra ficar calado, enquanto se prepara para acender umas bombinhas.
Um segurança olha pra trás:
-          Ei! Espera aí!!
Chico joga as bombas acesas em meio à escuridão, enquanto tentamos fugir rumo à solitária. Mas os saltos-alto nos atrapalha e caímos no chão duas vezes. As bombas explodem. Os ex-reféns estão prestes a nos alcançar, quando ouço gritos:
-          Inimigos!!!
Olhos pra trás e vejo um monte de vultos brancos descendo o morro, tendo à frente o carrinho do Homem da Rolimã. Os ex-reféns não entendem nada, são atacados e com medo aceleram a corrida em nossa direção. Nisso, eu e o Chico já sem saltos, chegávamos perto da solitária. Pulamos a armadilha, e erguemos a tampa de concreto da boca do túnel. Enquanto fazíamos isso, ouvimos o barulho de gravetos se quebrando e corpos caindo na armadilha.
-          Mas que desgraça é essa?! – Alguém gritou.
-          Que carniça de bosta!!! – Outro reclamou.
-          Tem umas coisas se mexendo no chão... – Um terceiro advertiu.
-          Alguma coisa me picou! – Um quarto falou.
-          Parecem cobras!!! – Um quinto conclui.
-          Eeeei!!! Socorro!!! – Todos gritaram.
Levantamos a tampa de concreto com a “tereza” e a roldana. Entrei no túnel com a lanterna, e o Velho foi no meu encalço, soltando o restante das cobras atrás de si, o que me fez acelerar de tal forma, que eu nem sentia o ferir dos joelhos, dos cotovelos e das mãos. Em meia hora, atingimos a saída do túnel, às margens de uma estrada ou rua, não sei.
-          Consegui! Consegui! Venci, venci, a todos, desgraçados! – Berrava o velho Chico, pulando na chuva.
-          E agora?
-          Agora você segue em linha reta, uns cem metros e chegará na praia, onde está um barco camuflado com folhas de coqueiro.
-          E o senhor?
-          Eu volto daqui!
-          O quê?!
-          Pra continuar tentando fugir!
-          Hem?! Pra quê? – As trovoadas e o som da chuva na folhagem não me permitiam ouvi-lo direito.
-          Pra que você vive se sabe que vai morrer?! Meu objetivo é sempre tentar fugir! Não é conseguir fugir! ...Adeus, amigo! Tenha uma boa fortuna! – Fez um aceno e entrou de volta no túnel...
E agora?! Em quem acreditar?! No velho Chico ou naquela junta médica? Estou mesmo numa ilha, ou numa cidade? Haverá mesmo um barco e uma praia ou somente uma mata onde me perderei? Seguir reto nessa mata de loucuras ou ir por essa estrada da razão?