terça-feira, 1 de novembro de 2011

A MISÉRIA DA MEMÓRIA

Eram dois guerreiros inimigos
Em combate, há muito tempo
Dois jovens, um judeu e um palestino
Prestes a se matarem, frente a frente

Até que um míssil caído do céu do deserto
fere os dois a um só tempo e destino
De modo que ao acordarem do desmaio
A memória do que eram haviam esquecido

Esqueceram que se matava
Esqueceram que se morria...
o que foram e o que era a história,
tudo perdido, e perdidos seus caminhos
Só tinham um ao outro na memória
E num mundo vago se encontravam sozinhos


Esqueceram que se matava
Esqueceram que se morria...
Esqueceram que eram inimigos
E se deram as mãos solidárias
Esqueceram  que eram soldados
E deixaram as armas para trás

Esqueceram que se matava
Esqueceram que se morria...
Esqueceram suas religiões
E ajoelharam juntos
Esqueceram suas nações
E falaram a mesma língua

Esqueceram que se matava
Esqueceram que se morria...
Esqueceram os seus costumes
E se abraçaram como mulheres
Esqueceram que eram homens
E choraram como meninos
Esqueceram que eram masculinos
E se beijaram como amantes

Esqueceram que se matava
Esqueceram que se morria...
Esqueceram onde moravam
E foram andando dadas as mãos
Esqueceram o que eram
E pensaram que eram irmãos.


Esqueceram...




O TIGRE CEGO


Caçador de rifle às costas,
Me vi ferido na mata.
Caçador solitário que era
Me vi perdido na vida

E eis que surge minha caça
E ela é que vem até aqui
É ela quem segue minha pista
O cheiro de presa
Que exala de mim.

E frente a frente
Eu e  o tigre
Ele fareja o ar sem me notar
O tigre é cego e só farejou meu sangue
Que na ferida apodrece minha carne

E frente a frente
a mira e o tigre
Frente a frente
Ele e meu rifle...

Mas a matar um tigre cego faminto
E a morrer por vermes consumido
Prefiro matar a fome do inimigo
E morrer devorado por um mito

EM BUSCA DO VINHO DE CANAÃ


Arqueólogo que era,
Escavando uma história sepultada
Deparei-me com letras de perdida escrita
O solo era a Judéia Antiga, e Aramaico, a palavra
O pergaminho narrava os fatos do homem que encontrou sem buscar
(arqueólogo do acaso) uma casa soterrada sob a contemporânea Canaã
Encontrou o teto, escavou e descobriu uma porta de tempos em terra fechada
Até que conseguindo abri-la, se viu numa sala escura mas sem obstáculos e intacta
Em meio à treva ouviu impossíveis murmúrios, ecos que se aproximavam, e acendeu a lanterna
Para seu horror divisou faces cavas, esqueléticas, olhos fundos, cadavéricos,  mas de  pessoas vivas
E as bocas murchas balbuciavam, e as mãos descarnadas o apalpavam e olhos arregalados o encaravam...


Mas em meio ao pânico reconheceu e compreendeu algumas palavras, depois frases, depois falas
E a compreensão daquele difícil  dialeto incompreensivelmente lhe trouxe  conforto e alívio
E as palavras dos mortos-vivos lhe contaram uma história, revelaram um acontecido :
Diziam que há um tempo distante, impreciso, houve naquela casa uma festa
Eram bodas em Canaã e para a vergonha do cicerone, vinho faltava
E foi então que um homem comum em meio da gente apareceu
Em meio à gente falava palavras novas  e  novas verdades
E sabendo da falta de vinho, fez o incrível, fez o milagre:
De potes d´água verteu vinho, bom, vermelho, sadio
Que não embriagava, antes os despertava
Mas ele como surgiu, assim sumiu
Seguido sempre pelos amigos
Impávido e  infalível
Tranquilo...


A festa continuou, 
o vinho não acabava, 
o vinho continuou, a festa não acabava
Mas um tempo depois, a terra tremeu, a casa soterrou 
Ninguém conseguiu sair, a terra tudo lacrou, as saídas se fecharam
E se passaram horas, e estas viraram dias, e os dias anos, e os anos séculos
Mas a vida continuou, o vinho não acabava, as pessoas não morriam, a vida continuava
E viviam do vinho que nunca cessava, conseguiam viver sob a terra, sem enxergar, ninguém respirava


Até que surgira ele agora, o arqueólogo do acaso, o homem que vinha libertá-los
E aquela gente, gritando de alegria, se dizia livre e pela porta correndo saíram
O homem ficou só, se achando louco, caminhou e tropeçou em cântaros
Destapou-os, cheirou suas bocas, sentiu o aroma de buquê de vinho 
Não resistiu,  tomou de um gole no cálice das mãos e  bebeu
Se sentiu estranho, se sentiu novo, se sentiu eterno
Saiu pela porta e soterrou de novo a entrada
Escreveu esta história e saiu pela vida...


Eu desde então vivo a procurar
o local exato da casa perdida
a porta de entrada da sala
dos cântaros sagrados
do vinho de Canaã
do vinho da vida

sexta-feira, 21 de outubro de 2011

O Bebê Sorridente


E quando no parto retirado 
das entranhas de sua genitora
Respirando o seu primeiro oxigênio
À primeira palmada de luvas do obstetra

Gargalhou ao invés de chorar um recém-nascido 
que pela vida afora iria sorrir quando a dor sentisse
e quanto mais esta doesse, mais ele riria de contente...

Levado aos melhores da medicina
Para ser curado da estranha doença
O menino que  ria de suas desgraças
Que dançava com seus sofrimentos
Que carinhava suas terríveis chagas,
Foi  o novo homem dos novos dos tempos...

As Borboletas

Entre  2017 e 2019, eras longínquas,
Espécies originais de lagartas coloridas 
passaram a devorar a  Mata Amazônica.
E depois de desfolhada a inteira floresta,
E concluindo a metamorfose completa,
Partiram em  revoada gigantesca
Nuvens amarelas de zilhões de borboletas
desovando e destruindo todas as plantações do planeta.

...E até que a humanidade morreu de fome esquelética...